Unilateralismo Americano: fundamentalismos e violências

Heleieth Saffioti

Crédito final: Heleieth Saffioti é professora dos Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC/SP e professora titular aposentada de Sociologia da UNESP.

Há pouco mais de uma década, a humanidade vivia num mundo bipolar, União Soviética e Estados Unidos buscando, cada um, estabelecer sua hegemonia. Hoje, a realidade é outra: uma sociedade mundial unipolar, dominada pelo Império em que se transformaram os Estados Unidos. Com efeito, o poder desse país é incomensurável.

CabCabe, agora, a pergunta: a capacitação técnica de sociólogos e de outros cientistas sociais é suficiente para conduzi-los a uma solução dos abissais problemas que afetam negativamente a humanidade? Pode-se responder que não, exatamente porque a competência técnica não é neutra. Pelo contrário, está sempre vinculada a uma postura político-ideológica. Exemplificando, há sociólogos brasileiros afirmando que o FMI dá ordens aos Estados Unidos. Evidentemente, há um sem-número de norte-americanos reiterando o mesmo pensamento. É preciso que se ouçam as vozes dissonantes que emergem no seio da própria sociedade norte-americana. A título de ilustração, apresenta-se a afirmação de Dani Rodrik, turco de nascimento, mas naturalizado cidadão norte-americano, professor em Harvard: “O Consenso de Washington (1989) vai entrar em colapso e espero que alguma coisa sensata seja colocada no lugar (Folha de SP, 02/09/01)”. Há, todavia, na própria postura não-crítica de norte-americanos, uma espontaneidade ou um grau de acinte espantoso. Com efeito, pode-se tomar a declaração feita, em 1998, por C. Fred Bergsten, ex-funcionário do Tesouro e do Conselho Nacional de Segurança dos Estados Unidos e atualmente diretor do Institute for International Economics:

“Os interesses nacionais dos Estados Unidos são fortemente sustentados pelo FMI, como vimos na crise mexicana de 1995 e estamos vendo outra vez na atual crise asiática. O FMI é, de fato, uma das melhores coisas possíveis que nós poderíamos imaginar: seus programas não nos custam nada, mas geram enormes benefícios para nossa economia e para nossa política externa” (citado por Mercadante,Folha de SP, 05/09/01, p. B 2).

Se o mundo bipolar produzia efeitos deletérios à grande parte da humanidade, esta parcela cresceu desmesuradamente no mundo unipolar. Com George W. Bush no comando do Império, explorando ao máximo os atos terroristas, planejados supostamente por Bin Laden (nunca se obteve uma só prova disso), instituiu a mais maniqueísta ideologia - o eixo do bem e o eixo do mal - que lhe deu, e continua propiciando, ampla cobertura para a instauração de uma ordem social muito mais nefasta que a era Macarthista, com seus tribunais militares, ostensiva censura de toda e qualquer expressão, assim como acirramento de discriminações contra múltiplos grupos sociais.

Uma das novidades da globalização consiste na geração de pobres e miseráveis não apenas na periferia e na semiperiferia, mas também no seio dos países ricos. No âmbito internacional, o quadro é trágico.

“...a miséria e a pobreza atingem dois terços da humanidade e cresce incessantemente a desigualdade social no mundo. A relação entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres era de 11 para 1 em 1913; de 30 para 1 em 1960; e passou a 90 para 1 em 2000. O patrimônio líquido dos 500 bilionários deste mundo é igual ao patrimônio líquido conjunto de metade da população mundial. (...) Os governantes são eleitos graças aos vultosos recursos de suas campanhas eleitorais. Devem atender aos interesses de seus financiadores. (...) Não é por outro motivo que o presidente Bush se recusa a apoiar o Protocolo de Kyoto, destinando US$300 bilhões ao projeto armamentista de defesa espacial, enquanto o G8 destina apenas US$1 bilhão para combater as doenças na África. As instituições internacionais são dominadas por esses países e, logo, pelos mesmos interesses (grifos meus)” (Grajew, Folha de SP, 05/09/ 2001, p. A3).

Os ataques suicidas aos símbolos dos poderes econômico e militar (quase se conseguiu atingir também o símbolo do poder político) dos Estados Unidos em 11/09/01, merecem reflexões. Há que se trabalhar, incansavelmente, pela paz. Não há, seguramente, nenhuma pessoa de bom senso que deseje guerra. Todavia, na presente ordem  social internacional, não há nenhuma probabilidade de se alcançar a  paz. O mundo é crescentemente unipolar. A hegemonia norte-americana é praticamente absoluta, não subordinando de forma integral apenas o Japão e o G8.

Obviamente, esta política gera não somente resistência; gera, sobretudo, ódio. Esse ódio traduz-se, algumas vezes, por ações violentas, como ilustram os eventos de New York e Washington. Ainda que se condene qualquer tipo de terrorismo, há que se analisar as relações internacionais, assim como os diferentes tipos de ações terroristas. Em todos os casos, há um móvel: o fanatismo, ou seja, o dogmatismo. Muitas vezes, o fanatismo é claramente religioso. Mas não seria todo dogmatismo uma verdadeira religião? Não se trata de uma crença? Os kamikazes têm crenças, dogmas, pelos quais julgam ser seu dever se imolar. A busca do lucro, a qualquer preço, não se iguala a um dogma? A sociedade de consumo, na qualidade de alvo a ser perseguido e preservado, não representa uma obsessão, um dogma? A crença na existência da felicidade mais plena na sociedade de consumo não é religiosa? A hegemonia do capital financeiro - já descrito por Lênin, na segunda década do século XX, como parasitário - traz gigantescos prejuízos à maioria da população mundial. Jean Ziegler, autor dos livros A Suíça Acima de Qualquer Suspeita e A Suíça Lava Mais Branco, declarou:

“Todos os dias, aproximadamente 100 mil pessoas morrem de fome ou de suas conseqüências imediatas em todo o mundo;  826  milhões  de  homens,  mulheres  e  crianças estão  permanente e gravemente desnutridos. Eles se tornam cegos por falta de vitamina A. As crianças têm o cérebro atrofiado. Em suma, a desnutrição leva à invalidez. Se uma criança entre 0 e 5 anos de idade for mal alimentada, ficará mutilada para o resto da vida. Como diz Régis Debray: ‘A criança é o crucificado de nascença’. E essa maldição é produzida de geração em geração: cada ano, ela dizima milhares de crianças mutiladas pela falta de nutrição. E tudo isso acontece num planeta abundante em riquezas. O Relatório Mundial da Fome, feito pela FAO, indica que a Terra, no seu atual estado de desenvolvimento das forças de produção agrícola, poderia nutrir, sem nenhum problema, 12 bilhões de seres humanos. Nutrir sem problema quer dizer: oferecer 2.700 calorias por dia a cada pessoa. Ora, atualmente, somos pouco mais de 6 bilhões de  pessoas na Terra... e 1/6 da população é destruído pela fome e desnutrição!

A causa principal deste disparate é a distribuição desigual das riquezas do planeta. Em 1960, 20% dos mais ricos do planeta dispunham de uma renda 31 vezes superior à dos 20% da população mais pobre. Em 1998, a renda dos 20 %  mais  ricos era 83 vezes superior à dos 20% mais pobres. Em 70 países, o ganho médio é menor do que há 20 anos. Atualmente, de acordo com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), mais de 2 milhões de seres humanos vivem na miséria absoluta, sem residência adequada, sem salário fixo, sem trabalho regular, sem assistência médica, sem nutrição suficiente.

Como diria Josué de Castro, isto é ‘um genocídio silencioso’. Herbert de Souza, o Betinho, disse: ‘Quem morre de fome morre assassinado’. Quem tem dinheiro come, quem não tem morre ou torna-se inválido. Não existe fatalidade. São as regras do mundo, feitas pelos homens, que criam a fome e matam. É essa ordem do mundo que deve ser revertida radicalmente. (...) Não podemos aceitar um mundo no qual existem ilhas de progresso. Não podemos aceitar uma economia mundial que admita a não-existência de um 1/5 da humanidade. Se a fome não for exterminada deste planeta, não haverá humanidade possível. É necessário reintegrar essa ‘fração sofredora’ que hoje é excluída.

É o atual capitalismo selvagem que deve ser civilizado. A economia mundial nasceu da produção, distribuição do comércio e do consumo de alimentos. Afirmar a autonomia da economia em relação à fome é um absurdo, pior: um crime. Não podemos entregar a luta contra essa calamidade ao livre mercado. É necessário submeter todos os mecanismos da economia mundial a esse imperativo primeiro: vencer a fome, nutrir convenientemente todos os seres do planeta. (...) É necessário fechar a bolsa de matérias primas de Chicago, combater a deterioração constante dos termos de troca e aniquilar a estúpida ideologia neoliberal que cega a grande parte dos dirigentes dos estados ocidentais.(...)”

Como um povo pobre, sem poder, sem armas pode tentar mudar este status quo? O único recurso de que dispõe é a violência traduzida por atos de terror. Obviamente, é lamentável que se hajam perdido quase três mil vidas inocentes. Entretanto, há que se perguntar: e as cem mil vidas que o Império ceifa diariamente por meio da fome? A vida de um norte-americano vale mais que a de um latino-americano, que a de um africano, que a de um asiático? Evidentemente, NÃO! Todo ser humano tem direito ao mais primordial dos bens: a VIDA! Se a análise qualitativa conduz ao universal direito à vida, resta a comparação quantitativa. O ataque terrorista de 11/09/01 ceifou menos de três mil vidas; o Império mata, de fome, cem mil seres humanos ao dia. Em decorrência disto, seus inimigos estão disseminados pelo mundo, inclusive no interior do próprio território norte-americano.

Os fundamentalismos, venham eles travestidos de religião, da crença de que há um eixo do mal e um eixo do bem, do desejo cego de preservar o american way of life, são todos, sem distinção, fundamentalismos políticos. Donde se depreende que os maiores terroristas do mundo são os Estados Unidos. Violência, sob qualquer modalidade, gera violência. Há maior violência que a própria existência do Império?

 

Referências bibliográficas

GRAJEW, Oded - Uma esperança para a humanidade. Folha de S. Paulo, 05/09/01.
MERCADANTE, Aloizio - Ruptura ou continuísmo? Folha de S. Paulo, 02/09/01.
ZIEGLER, Jean - A Suíça passada a limpo? Entrevista concedida a Patrícia Nascimento, publicada pela revista Caros Amigos, Ano V, nº 54, setembro 2001.

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